Walter Moreira Salles Júnior tem 68 anos e nasceu no Rio de Janeiro. É um cineasta aclamado mundialmente, dirigiu filmes que fazem parte da história do cinema brasileiro e vivem nos corações de praticamente todas as pessoas que conheço. Ele também é um bilionário com uma fortuna de mais de 4bi de dólares que não é segredo pra ninguém. Mas aparentemente isso não importa pra muita gente.
No domingo passado, ele subiu no palco em Los Angeles para ser o primeiro par de mãos brasileiras a segurar um troféu do Oscar. Ainda Estou Aqui, dirigido por ele, dispensa introduções. O filme foi um fenômeno desde sua primeira exibição na Mostra Internacional de Cinema de SP no ano passado, onde cinéfilos e público se debatiam (e ameaçavam grosseiramente, pra dizer o mínimo; assediavam, pra ser mais realista) a organização do festival pelas redes sociais pela “incompetência na distribuição de ingressos e limitação das salas” - nem vou entrar na tangente de que a programação da Mostra, na minha opinião a mais rica e interessante até então, tinha mais de 400 filmes; vários que provavelmente nunca mais serão vistos numa sala de rua paulistana. A galera realmente queria ver a porra desse filme. O mais cedo possível, a qualquer custo.
O filme tem a premissa comovente - duas das nossas atrizes mais consagradas no panteão da cultura nacional oferecendo uma performance que só elas poderiam entregar para contar a história de uma mulher que dedicou sua vida à busca pela verdade - pela admissão de culpa do regime da ditatura-empresarial-militar (apoiada pelos EUA), brasileira pelo assassinato de seu marido, Rubens Paiva (e, mais tarde, pela defesa dos povos indígenas, mas pelo visto essa parte não toca muito o coração de uma esquerda obcecada pela defesa da democracia que nunca existiu). Eunice foi uma mulher forte, rica, instruída, com uma linda família, em um país e período onde mulheres (especialmente as não-brancas) eram, em sua maioria, fortes, pobres, institucional e legalmente impossibilitadas de acessar educação, e mães solteiras. Eunice Paiva foi uma mulher que, frente a morte, censura, tortura, ameaças e riscos, se recusou a perder. Uma mãe contra o mundo (ou contra os milicos). E isso é bem brasileiro. Eunice Paiva nunca foi uma “brasileira média”, mas foi sujeitada a horrores que ninguém que não passou pela mesma coisa pode imaginar, relativizar ou diminuir, e é por isso que essa newsletter não vai entrar no mérito de analisar o filme. Não vamos falar do roteiro, da fotografia, da importância da memória da ditadura, das contradições de uma esquerda que brada “Sem Anistia” enquanto a PM faz chacina nas favelas há 10km de suas casas. Vou linkar todos os vídeos de comunicadores que assisti nos últimos meses que já tocaram nesses pontos de forma muito eloquente e plural, com raciocínios nos quais assino embaixo e repasso pra vocês escutarem e entenderem onde vocês se percebem.1
O que me revirou as entranhas no bafafá pós-oscar foi outra coisa, algo que precisa ser dito com a dureza de quem se cansa de ver os meus colegas caindo nas mesmas armadilhas. Relutei desde outubro do ano passado a escrever essa edição. Dizer publicamente os meus pensamentos indizíveis me causava a ansiedade de me deparar com uma bomba de mas e vírgulas que, com toda a honestidade do meu coração, pouco me interessam discutir.
Seguinte: que ideia descaralhante é essa de exaltar Walter Moreira Salles Júnior acriticamente quando vocês sabem - e eu sei que vocês sabem - que ele é um bilionário?
Fogo nos Bilionários, menos no que eu gosto!
Um dos pilares da nossa cultura atual de internet é a celebrização e holofotação de indivíduos a partir de uma mínima ressonância de algum feito dessas pessoas - uma obra, um filme, um álbum, um meme - com um vago sentimento de injustiça que permeia a nossa existência cotidiana. Esse é, inclusive, uma das mais perspicazes estratégias da extrema direita e facções conspiracionistas online. Cooptar um sentimento disforme de opressão e injustiça sentido pelas pessoas e surrupiar essa percepção - porque ninguém aqui é burro, o povo sabe que sofre, ô se sabe - e direcionar uma explicação direta, simples, plana e confortável, para canalizar esse sentimento. A própria Fernanda já fez a boa pra gente com a frase que foi reproduzida à exaustão em todas as redes sociais que o brasileiro consegue tapear com seus dedinhos:
“O Brasil tem pena do mundo por não saber o que a gente sabe”
Ou, em outra iteração, nas palavras de Milton Nascimento:
Eu sei, vocês não vão saber” (até arrepia essa, aí)
A gente sabe. A gente sabe o que é essa língua brasileira, essa cultura brasileira, esse modo de ser brasileiro. Não vou cometer o crime de tentar elaborar sobre pra não deixar ninguém de fora, porque a diversidade é a força vital desse projeto insano de criação de identidade em torno do que chamam de país mas a gente sabe que é algo muito, muito maior. E sim, é mesmo muito triste não saber. É bom demais ser brasileiro, ser sudamericano, ser latino. É bom num nível, vei. Benito disse, a gente grita: Gracias mami por parirme aquí. Amém.
O que eu quero com esse texto não é gongar o rolê de ninguém que sentiu no fundinho da alma esse pertencimento cultural, que vibrou, que torceu, que gostou do filme, que engajou no hype. Contudo, grande parte de quem acompanha meu trabalho, e em quem eu acho que essas palavras talvez cheguem, não são o público geral do cinema mainstream. Vocês são trabalhadores da cultura. Especialmente do cinema e audiovisual, da educação, da museologia e das artes visuais. Pessoas instruídas nesse assunto, com a mínima base e recursos para interpretação de mídia e análise cultural (que é conhecimento, é trabalho e, não, não é qualquer um que pode sair hablando sobre arte e cultura como se fosse só questão de opinião. Comentarista de esporte e política cês respeitam, mas bate um Oscar e todo mundo bota um óculos redondo e gola rolê preta. Sábia que foi Glória Pires quando disse não ser capaz de opinar.). E é por isso que a gente precisa ter uma conversinha.
Do meu coração pro teu, sem afagar seus cabelos: Que porra é essa de memes Walter Salles Daddy circulando nas redes de vocês????
Quero apontar e deixar bem claro a hipocrisia e a inconsistência INJUSTIFICÁVEL que é uma classe trabalhadora que ama se chamar de classe trabalhadora, que sabe muito bem dos problemas que enfrenta, que sabe muito bem do custo que é fazer cinema e arte no Brasil, que adora se chamar de proletariado porque combina com o boné do MST e um pseudoantifascismo e exaltar e elogiar um BILIONÁRIO na cultura como se ele fosse qualquer coisa além de um bilionário.
Um homem que, em espírito de mecenas e seguindo os modelos já montados pelos que lhe antecederam na genealogia da elite velha-rica, tem fundações, institutos, projetos filantrópicos e o que mais eles quiserem jogar moedinhas pra deixar o povo com os olhos saciados. A filantropia e as fundações bancadas pela elite já se consagraram como recurso de amaciamento da sua imagem diante de um povo que pode se revoltar a qualquer momento. Walter, tendo ou não controle significativo do patrimônio de sua herança - porque, pelo visto, ele e seu outro irmão-culturado João venderam sua parte nos holdings pros outros dois irmãos em 2022, deixando, é claro, o dinheiro na família pois família acima de tudo - segue sendo um dos homens mais ricos deste país, com dinheiro de morte, de desmatamento, com status de associação à primeira ditadura na era Vargas.
Poisé, Luigi… mangia che te fa bene…
Sempre lembrar, nunca se esquecer é o lema da esquerda democrática aos horrores da ditadura. Historicamente, 1964 foi ontem e a memória e sua preservação são o assunto central das instituições que escolhem quais memórias vão ser preservadas. O que será arquivado, quais filmes serão feitos, quem vai expor essas memórias, em quais termos e para quem. A memória de curtíssimo prazo da esquerda cultural, no entanto, parece estar sofrendo de uma amnésia de conveniência. 2 dias atrás ganhamos (nós ganhamos?) uma estátua de homem dourado das mãos da mais alta instituição de validação do mercado cinematográfico. Das mãos dos EUA pras mãos dos bilionários brasileiros (engraçado, pois me lembra uma outra vez onde era notória essa passada de bastão das mãos dos EUA para bilionários brasileiros…. mas não lembro onde que vi).
Quantas bolsas ZUM são necessárias pra vocês esquecerem quem é Walter Moreira Salles Júnior? Quantos Oscars vale o cinema nacional? Pelo visto não mais do que o dinheiro que grandes corporações perdem com a regulação dos streamings. Quantos bilhões vale o cinema nacional? De acordo com o Ministério da Cultura, esse ano a Ancine vale R$119,61 milhões. Aproveitando o assunto, recipientes das LPG/2024, cês já foram pagos ou nem?
Se tem uma coisa que o fenômeno de espetáculo midiático que esse filme evidenciou para nós, trabalhadores da cultura brasileiros, é que somos sim o lixo ocidental dentro do nosso próprio país. Nada de novo sob o sol da nossa terra. O que me preocupa é, ao que tenho visto, me parece que nosso masoquismo e recusa a nos enxergarmos como trabalhadores sob a bota das instituições e corporações em prol de fazer gracinha no bloco. Se o carnaval é a festa do povo, a fantasia de estátua brilhante podia ter sido de saco de pancadas.
Não sei vocês, mas Walter Salles não é meu pai. Não é meu daddy. Não me banca, sequer paga meu salário pra piada fazer sentido (Nem IMS e nem instituição nenhuma recebe passada de pano. Meus companheiros são só quem recebe holerite, então se for defender um CNPJ, o faça em outro lugar). Faltam muitos pais nesse país no RG de muita gente. Graças a deus eu tenho um pai pra chamar de meu e não preciso entrar no meme delírio pseudofreudiano. A sombra da cultura memística é que a gente perde o freio, a hora de parar e a vergonha na cara.
Tudo bem, só promete que não faz de novo. Por favor, não façam de novo. Ainda estamos aqui na base. Não viaja, tu é daqui mesmo.
Vale muito a pena dar uma olhada nesses vídeos aqui:
Chavoso da USP - AINDA ESTOU AQUI - PORQUE NÃO GOSTEI DO FILME
Jones Manoel - CHAVOSO DA USP E A CRÍTICA A AINDA ESTOU AQUI (resposta e solidariedade à campanha de ódio que o Chavoso sofreu após esse vídeo)
Ora, Thiago - Meu Problema com Ainda Estou Aqui (e a SALVAÇÃO plataformizada do cinema brasileiro) - BEIJO DE CHEFFF
O projeto Alquimia Fotográfica é uma iniciativa interdisciplinar de educação, criação e pesquisa em fotografia e cinema voltado ao material fílmico que centraliza a artesania das imagens, laboratórios eco conscientes e publicações que contemplam a fotografia como fenômeno da coletividade, do tempo, da natureza e da política dos processos artísticos.
Dentre várias coisas legais que foram produzidas nos últimos tempos, convido a dar uma olhada nessas aqui:
Zine digital gratuita | Fenóis e Filmes - imaginando a revelação fotográfica a partir da flora brasileira
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