Se o poeta é um fingidor, o artista da imagem é um… poeta?
parte I. A moral do fazer artístico, fenomenologia e naturalismo científico
Faço uma confissão: eu não fui uma criança que poderia ser descrita como “artística”. Sabe quando a gente lê uma biografia, conversa com a mãe de alguém, ouve um artista falando de seu trabalho e tem aquela história do “desde muito criança gostava de fazer (insira atividade artística)”? tinha muito isso não. Acho que minha dose de vontade de experimentar criativamente com arte era bem na média, mas eu adorava outras coisas. Coisas, aliás, que hoje ficam na base do meu fazer artístico. O que eu passava mais tempo fazendo, se somar minhas memórias marcantes sobre mim mesma antes dos 10 anos era ler, pensar e observar a natureza. Queria ser bióloga, assistia tudo o que podia sobre animais, lia tudo o que me dessem sobre… qualquer coisa. E pensava. Muito.
Na pesquisa para escrever esse texto, acabei me deparando com o papel que a filosofia teve na minha vida de uma forma que ficou difícil de ignorar. Buscar maneiras de explicar a existência e experiência humana através da observação e do próprio pensamento é natural à nossa curiosidade, mas mais interessante do que isso (acho eu), é revirar as ideias que moldam o nosso sentido de mundo e tentar entender de onde elas vieram, de quem elas vieram, e quais estruturas e sistemas as sustentam, para quê, para quem - enfim, perguntas.
Esse ensaio tem duas partes e, portanto, vai ser dividido em dois posts. O que tenho em mente sempre que escrevo aqui é levantar reflexões em quem lê a partir das minhas próprias, e agora, em especial, destaco isso: tamo só desenrolando uns pensamentos (e sim, isso é um convite pra você se juntar nos comentários ou no privado). Como a gente vai entrar numa brisa filosófica sobre palavras e conceitos que são plurais e polêmicos como moral, ética, arte e ciência, o lembrete que deixo aqui é que esse texto tem, sobretudo, contexto, então o que tá sendo colocado sob esses guarda-chuvas mega abrangentes tá vindo de um lugar específico.
Que é esse aqui:
Na parte 1. Vou falar sobre os processos experimentais na arte e suas antíteses ao método de criação tradicionalmente validado e compará-los com os conceitos filosóficos, também antitéticos, da fenomenologia e o naturalismo científico. Isso vai abrir um caminho para observarmos a irritante tendência que existe por aí de tratar a arte (no nosso contorno, as imagens em fotografia e cinema) como um fazer dissociado de moral, e a tendência mais irritante ainda de achar que nossas escolhas como artistas não possuem (ou não precisam possuir) uma constituição ética. Daí depois gente vai conversar sobre como a ✨️ internet e as redes sociais ✨ ️ são entidades perversas no nosso processo de criação, influenciando tudo isso mencionado acima.
Na parte 2. vamos aproveitar esse papo de internet para usar o status da fotografia analógica e o cinema de película de hoje, 2024, para analisarmos como as influências de um mercado digital moldam o desejo por uma determinada estética, a situação atual do fazer fotográfico e cinematográfico num mundo de imagens na rede e um audiovisual predominantemente publicitário e comercial. Para amarrar, a gente volta na ideia do fazer fílmico e fotográfico com película e os desafios que processos experimentais evocam para nós, artistas do meio, ao não receber (ou não pretender receber) a validação das instâncias institucionais e sociais.
A segunda parte vai demorar um tempo indeterminado pra sair pelo simples motivo de que eu quero conversar bastante com uma galera antes de editar e publicar. Daí a graça de vir trocar ideia depois de ler - você pode ser uma dessas pessoas na galera. Vai ser legal. Juro.
Espero que gostem!
Se o poeta é um fingidor, o artista da imagem é um… poeta?
A moral do fazer artístico, fenomenologia e naturalismo científico
O título, aos que não pegaram, vem de um poema do Fernando Pessoa chamado Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
É um poema bem famoso e sagaz onde o ele fala sobre o processo criativo e o distanciamento que ocorre entre o sentir e o representar em uma obra de arte. Tem várias camadas nesse poema, mas o que me chama a atenção nesse caso é o reconhecimento, logo na primeira estrofe, da habilidosa manipulação que o poeta exerce sobre sua escrita e, por conseguinte, na experiência do leitor, quer queira ou não. Na sua obra estão seus sentimentos, seu olhar, sua visão, suas ideias, prontas para serem partilhadas com os receptores. A questão que coloco aqui é: o seus sentimentos, seu olhar, sua visão e suas ideias são realmente só seus?
A construção da nossa subjetividade como seres humanos é uma constante por toda a vida. Ninguém nasce pronto, no máximo melhor equipado para algumas coisas do que para outras. O resto do nosso destino é uma mistura misteriosa de contexto, acontecimentos, sorte (ou falta de), escolhas (ou falta de) e oportunidades (ou falta de). Se a arte é um ofício onde a produção irradia dessa subjetividade, com linhas tão tênues e, por vezes, inexistentes, entre a percepção do sujeito / artista por ele próprio ou pelos outros, vamos ter problemas dessa ordem pra lidar.
“Hoje o aspecto ostensivo de todas as empreitadas da humanidade é a justificativa científica, e o fatídico momento em que sua verdadeira face transparece através das máscaras ainda não foi proclamado. O “realista” se presume como um observador científico; já o “surrealista” disfarça-se como o próprio “subconsciente”, exigindo para si a piedade moral sempre concedida aos impulsos incontroláveis do ser (sem deixar de se posicionar em superioridade a eles com uma perceptível arrogância, entretanto). Essa apropriação de termos científicos serve para criar a ilusão de que as informações provenientes da ciência estão sendo empregadas para usos criativos. A obra de arte é, consequentemente, agraciada com uma autoridade equiparável à da ciência. Assim, os princípios da primeira escapam a qualquer investigação, visto que os processos da última estão aquém da compreensão popular. Infelizmente, nem sempre é a arte que ganha, mas a ciência que perde, eventualmente, seu prestígio entre o público. A exploração surrealista do “automatismo psíquico puro” serviu para minimizar as intenções terapêuticas e disciplinadas de uma psiquiatria responsável e inspirou o equívoco de que qualquer um pode ser um analista, especialmente na crítica de arte.”
Maya Deren - An Anagram of Ideas on Art, Form and Film
A cineasta experimental Maya Deren escreveu, em 1946, um livro-panfleto onde elabora em pequenos textos interligados por tema, no formato de anagramas, opiniões, observações e conceituações sobre a arte não apenas como ofício e profissão, mas como uma investigação cultural ampla, que parte de um entendimento da estética*, psicologia, ciência e antropologia.
Deren, além de cineasta, era mestra em literatura, coreógrafa, e filha de um psiquiatra russo, vivendo e trabalhando nos EUA, nos cenários da 2ª guerra mundial e, depois, da guerra fria - desnecessário dizer que a gata tinha takes bem ousados pra cena na época (e que eu ainda consideraria ousados hoje, diga-se de passagem). Com o sucesso de seus filmes, muitas pessoas aproximaram ou até nomearam seu estilo como surrealista, e Deren nega (no livro, notavelmente ofendida rs) a descrição por uma divergência de princípio com o movimento surrealista. Dentre suas críticas diretas e indiretas, ela descreve um incômodo engatilhado tanto pela tolice do realista, apegado ao naturalismo científico em sua aplicação artística, se enxergando como apenas um observador passivo da realidade objetiva (em seus exemplos, destaca entre estes os documentaristas); quanto ressente-se do surrealista pelo contentamento em se abster das questões morais e éticas da arte, se escondendo atrás da moita do “subconsciente” para justificar sua poética.
*Estética como o conceito filosófico de estética, que vai além da qualidade visual das coisas
A ideia do artista como sujeito dotado de moral, que deve fazer escolhas de acordo com uma ética, e que não está isento dos dilemas que essas duas coisas apresentam e vão continuar apresentando ao longo do tempo não pode ser ignorada toda vez que aparece um problema na nossa frente que demanda discussões complexas onde não cabe uma (só) solução. Entender o artista (nem todo artista né, mas a gente, no caso) como proletário no capitalismo tendo que pagar as contas não deveria ser o suficiente para nos deixar confortável em fugir de reflexões, mesmo que só no campo das ideias, sobre o circuito mercantil da arte e quem ganha dinheiro nas galerias, sobre as instituições culturais e museus com departamentos de RP não diferentes dos de uma grande corporação nos discursos, sobre a influencerização do artista, do lifestyle de artista, da maneira como os editais se apropriam de discursos de forma rasa e inconsistente, da maneira que nós nos apropriamos de discursos que não são nossos, sobre os próprios processos de criação, sobre a validação artística dentro da panelinha acadêmica e seus loops discursivos. Problemas morais e os desconfortos que eles inevitavelmente nos postulam podem nos ajudar bem mais do que atrapalhar.
“Se a filosofia tem alguma contribuição a fazer para a tomada de decisões práticas nos dias de hoje, essa contribuição se inicia ao oferecer esclarecimentos acerca dos pressupostos éticos e metafísicos que temos sobre nós e o mundo ao nosso redor. Essas ideias básicas - sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade, sobre a natureza humana, a natureza da própria natureza, e a natureza do Bem - estão nas entrelinhas de todo o nosso comportamento atual, tanto individualmente, quanto culturalmente. [...] Quando confrontados com as consequências das nossas ações - extinções em massa, mudanças climáticas, poluição global, escassez de recursos - inevitavelmente experienciamos um desassossego moral em vista do que foi feito - do que nós fizemos - com a natureza. Não conseguimos deixar de pensar sobre as raízes dessa intensa reação e as mudanças nas práticas contemporâneas que essa percepção demanda. Para responder a essas perguntas, precisamos da ajuda da filosofia.”
Charles S. Brown, Ted Toavine - “Eco-Phenomenology - Back to the Earth Itself”
A filosofia da ciência tem um papel fundamental na construção de sentido de mundo no período atual que [antropocentricamente] chamamos de antropoceno. Num post anterior dessa newsletter, usei como exemplo um episódio da história da ciência e a maneira como ele foi reproduzido através dos livros de educação básica para ilustrar uma visão que atualmente guia o imaginário sobre progresso e descobertas. E as imagens, é claro, são um terreno de disputa de imaginário.
Para refletirmos sobre imagens - as que criamos e as que entramos em contato -, precisamos pensar sobre os imaginários que regem o contexto onde essas imagens existem, e quais são as filosofias, dogmas e conceitos que, por sua vez, embasam esse imaginário. Uma foto tumblr de frappuccino do Starbucks com filtro para postar no Instagram em 2010 tem tanto a ver com um imaginário e um determinado pressuposto filosófico quanto aquela foto do Sebastião Salgado da série documental dele sobre o extrativismo na Serra Pelada. Sim, tanto quanto. Talvez não o mesmo, mas as duas têm um.
Vários dos caminhos que levam às ideias que sustentamos hoje possuem alguma raíz nas correntes de pensamento do Naturalismo, Realismo e Positivismo - que centralizam a razão e a abordagem científica para a produção do conhecimento. Fica até repetitivo dizer o quanto esses conceitos estão presentes na maneira como entendemos, pensamos e moldamos nossos ideais na hora de observar e criar fotografias e obras audiovisuais, porque esses são os mesmos que estabelecem nosso jeito de estar no mundo sob a lente da colonização, do imperialismo e das tecnocracias. Quando estamos aprendendo a fotografar, quais são as técnicas empregadas que devemos usar? Quando pensamos em filme com uma boa fotografia, um bom roteiro, uma boa montagem, quais são os parâmetros que determinam essas categorias? Você segue regra dos terços? Você escolhe a lente certa? As cores certas? Você segue uma narrativa linear? Tá tudo em foco?
Isso é o básico, mas é o básico para obter quais resultados, para qual formato, para qual público que é acostumado com esse formato, de acordo com as regras de quem, embasadas em quais outras ideias?
Não é uma reclamação nem uma crítica. Eu tiro foto com foco certo e acho sim a regras de enquadramento úteis e eu gosto de filmes de gente normal, por incrível que pareça. Mas pega essas questões aí de cima e medita um pouquinho com elas. Vai ser legal. Ou não.
Pedaço de uma fala relevantíssima do fotógrafo André de Oliveira na abetura da exposição ‘Um Rolê no Paraíso - Parte II’, que aconteceu em abril na galeria Beco Visceral - a 1ª galeria fotográfica de Paraisópolis.
A fenomenologia, desafiando o naturalismo, é um modo de pensamento filosófico que retoma a importância dos fenômenos, os quais devem ser estudados em si mesmos, entendendo que a maneira como experienciamos a realidade é o que, de fato, constitui a nossa consciência.
Na visão fenomenológica, o que importa é que a percepção acontece na intuição, ato pelo qual a pessoa apreende imediatamente o conhecimento de alguma coisa com que se depara, sendo subjetividade o ponto de partida para o entendimento de estar no mundo. Para a prática artística, a fenomenologia faz sentido pela maneira como reorienta o saber às coisas como elas mesmas são, uma intuição sobre a essência de algo que pode ser codificado de maneira atemporal, através da redução eidética .
“Por exemplo, "um triângulo". Posso observar um triângulo maior, outro menor, outro de lados iguais, ou desiguais. Esses detalhes da observação — elementos empíricos — precisam ser deixados de lado a fim de encontrar a essência da ideia de triângulo — do objeto ideal que é o triângulo —, que é tratar-se de uma figura de três lados no mesmo plano. Essa redução à essência, ao triângulo como um objeto ideal, é a redução eidética.”
A fenomenologia tende a estar presente nas entrelinhas de processos experimentais - entender as coisas como são em si mesmas, ou seja, em sua essência, permite que sejam suportadas quantas versões as subjetividades de quem entra em contato com elas forem capazes de criar. Um filme experimental não deixa de ser um filme porque sua essência está presente no caráter fílmico da obra, independentemente de ter ou não empregado todos recursos do formato “padrão” de cinema. Uma fotografia experimental não deixa de se utilizar do princípio essencial fotográfico, independentemente de quais outras técnicas - essas sim, podendo ser não-fotográficas - se aliem ao trabalho.
O que difere o experimental do não-experimental é também um caráter filosófico que, por sua vez, influencia o próprio fazer.
E quer sejam experimentais ou não, fenomenológicas ou naturalistas, as imagens ainda seguem carregadas da subjetividade de quem as faz e de quem convive com elas. Subjetividade essa que é moldada, refeita e lapidada pelos contextos com os quais interage. E o mundo de hoje tem a gente interagindo com o que tem na televisão, no Instagram, no Tik Tok, no Pinterest, tem IA, tem outdoor, tem até metaverso cara. E aí?
Bom gente, pra mim chega por hoje, foi um nó feito e desfeito à exaustão aqui no meu pequeno grande cérebro. Vou pedir a ajuda d’ocês agora!
Deixei umas perguntas abaixo bem professoral pra quem quiser dar seus 10 centavos mas precisa dum empurrãozinho pra começar.
Você percebe a influência de tendências estéticas e conceituais do que você consome pela internet permeando seu trabalho com imagens? Quais?
Cê fez/faz faculdade ou cursos de artes/audio/visual/foto? Consegue se lembrar das coisas que aprendeu e de que maneira, sob quais contextos, elas foram ensinadas?
Quais os dilemas morais que andam pisando na sua triste vidinha de artista na internet? Tem alguma coisa relacionada às redes sociais que você já disse dessa água não bebereis mas agora bebe e segue bebendo? Por quê?
Quão explícitos ficam seus valores políticos através da sua obra? Se você não falar, suas imagens parecem dizer o quê? A resposta te orgulha? Te incomoda? Foda-se?
E qualquer coisa mais que pensarem. Manda um e-mail, manda uma dm, comenta aqui no Substack, bora hablar.
Abraço,
Samanta
O projeto Alquimia Fotográfica é uma iniciativa interdisciplinar de educação, criação e pesquisa em fotografia e cinema voltado ao material fílmico que centraliza a artesania das imagens, laboratórios eco conscientes e publicações que contemplam a fotografia como fenômeno da coletividade, do tempo, da natureza e da política dos processos artísticos.
Dentre várias coisas legais que foram produzidas nos últimos tempos, convido a dar uma olhada nessas aqui:
Zine digital gratuita | Fenóis e Filmes - imaginando a revelação fotográfica a partir da flora brasileira
Para baixar o material, acesse: https://www.alquimiafotografica.co/educa%C3%A7%C3%A3o-e-difus%C3%A3o
Faça sua contribuição voluntária à pesquisa após o download via PIX para floraefilme@gmail.com ou oferecendo uma contribuição recorrente de R$5, R$10 ou R$20 no apoia.se https://apoia.se/floraefilme
Como já sabem, outro jeito maneiríssimo de apoiar meu trabalho é, bem, me chamando para trabalhar! No meu site tem muitas informações sobre o que realizo, então não vou me estender nisso por aqui :)
Além disso, vai ter oficina em São Paulo no dia 13/07 , lá no RALO Coletivo, tem algumas vagas ainda!
Pra mais informações disso é só entrar aqui