Cosmovisão fotográfica para propagar ideias através do tempo
ou o que a sintetização da ureia em 1800 e bolinha nos conta sobre ideologia do progresso?
“O tempo pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro.”
Leda Maria Martins em Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela
Grandes mudanças de paradigma na história da humanidade não acontecem de um dia para o outro. É comum que exista uma experiência dentro do ensino formal que direciona para uma percepção do tempo em marcos - uma linha do tempo só com as datas que importam. Decoramos os ápices temporais dos eventos, o descobrimento-de-não-sei-o-quê por sabemos-bem-quem, os nomes dos gênios, os nomes dos monstros, o ano das quedas e ascensões de impérios, os nomes das mudanças teóricas caracterizadas como avanço, que por sua vez classificam os conhecimentos prévios a elas como ultrapassados.
Integrar o conceito amplo da cosmovisão¹ é essencial para buscar significados com curiosidade, abrir espaço para questionar o que se tem tanta certeza. É mais simples permanecer na ilusão da modernidade quando acreditamos (porque assim aprendemos) que nossos ancestrais eram tolos, primitivos, que o mundo era de um determinado jeito porque algum avanço tecnológico ainda não existia. Crendices, conhecimentos populares, remédios de vó, garrafadas mágicas e chás de cura não mais se sustentam como saberes possíveis. Aquilo que não segue determinado processo, validado por determinada instância dos tais “detentores do conhecimento” é uma bobeira.
¹Cosmovisão, visão de mundo, mundividência, é um conjunto ordenado de valores, crenças, impressões, sentimentos e concepções de natureza intuitiva, anteriores à reflexão, a respeito da época ou do mundo em que se vive. Em outros termos, é a orientação cognitiva fundamental de um indivíduo, de uma coletividade ou de toda uma sociedade, num dado espaço-tempo e cultura, a respeito de tudo o que existe
Tudo muda o tempo todo, mas o tempo das coisas é o tempo das coisas, e as descobertas científicas que hoje sustentam diversas áreas do nosso cotidiano não foram aceitas de prontidão. Uma história amplamente difundida em livros didáticos de química por todo o mundo bem exemplifica essas dinâmicas:
Em 1828, o químico alemão Friedrich Wöhler realizou o procedimento de sintetização da ureia, uma substância orgânica, através de uma substância inorgânica. Este experimento é tratado como a maior contribuição para a derrubada da “teoria da força vital” - uma corrente múltipla que, dentre várias outras hipóteses, pensava a existência de um “princípio dirigente” ou “estímulo vital” presente nos seres vivos que os tornava capazes de produzir compostos orgânicos. Para quem não sabe exatamente o que essas palavras significam e precisou apenas guardar as informações “Wöhler”, “ureia” e “sintetização” por 2 dias antes de alguma prova na 9ª série para depois nunca mais, isso pode parecer uma tangente desnecessária para falar de fotografia, mas juro que isso nos diz muito mais do que parece sobre como uma ideia é passada através do tempo.
Esse causo da sintetização da ureia evidencia alguns pontos muito repetitivos na maneira como são contadas várias histórias que formataram o mundo como o conhecemos. Vai mais ou menos assim:
Tem um cara - um cientista - que, após descobrir acidentalmente um negócio genial - como criar substância sintéticas - derrubou uma teoria sem rigor e abstrata - que os seres vivos têm um princípio vital inerente - amplamente aceita por todos os outros cientistas do mundo - monolitizando uma doutrina de pensamento múltipla e mais complexa - deixando todo mundo sem opção senão imediatamente acatar com essa maravilhosa nova descoberta - sendo que passado mais de um século ainda havia discussões sobre a ureia e sobre sua natureza ser orgânica ou inorgânica.
Ocorre que a palavra política vem de pólis e, quando seres que não são da pólis pensam, podem imaginar outros mundos que não são política, ou, ao menos, não a política vigente. A linguagem é muito determinante nas interações, e tudo que vem da pólis traz a marca de um ajuntamento de iguais, onde a experiência política se pretende convergente. Isso tem animado em mim uma observação: sempre reivindicam a pólis como o mundo da cultura, e aquilo que ficou marcado como natureza é o mundo selvagem. Pois é nesse outro mundo que eu estou interessado, não na convergência que vai dar na pólis. Imagino potências confluindo a partir de um lugar, passando por ele, mas sem ficarem presas ali.
Ailton Krenak em Futuro ancestral
É conveniente simplificar e reduzir experimentos e descobertas científicas de forma a exaltar os desdobramentos que beneficiaram processos industriais. A possibilidade de obter substâncias sintéticas (que não existem na natureza) foi de grande relevância para a criação de produtos que hoje são tão proeminentes em todas as categorias do mercado, especialmente naqueles que utilizam-se de matéria prima orgânica, vegetal, animal e mineral, que tem prazo de validade. Independentemente do que a comunidade científica deve ter passado (e passa até hoje) discutindo sobre as especificidades teóricas e validação, para nós, pessoas a quem a sintetização da ureia pouco importa se ela não serve pra pagar meus boletos, o saldo é outro e é mais uma metáfora.
As transformações de paradigmas e a integração de novas ideias ao senso comum, ainda que em forma de narrativas muito parecidas, são um demorado processo com influências de diversas frentes de poder dentro de uma sociedade. Depois dessa alguém aí lembrou de mais alguma outra história que segue esse raciocínio de - geral compartilha um pensamento atrasado, daí um belo dia, sem querer, um cara genial descobriu algo novo e surpreendente, daí todo mundo bateu palma pois fizemos progresso, viva! - em qualquer outra área do conhecimento? Apostaria uns 2 reais que sim (mas favor não cobrar porque hoje eu tô sem).
Logo antes de editar esse texto, acabei conseguindo escutar o novo episódio do podcast Prato Cheio, da plataforma O Joio e o Trigo, ainda bem. O tema era, justamente, como surge e se desenvolve a ideologia do progresso.
“Hoje vemos essa incompreensão nos ataques científicos à astrologia: eles nunca levantaram questões válidas, se concentrando ao invés disso em “qual seria então a maneira que os planetas exercem determinada influência ou se um planeta estaria literalmente dentro de um signo ou não - e se esses tais signos sequer existem. Para um astrólogo tradicional, esses argumentos parecem ignorância voluntária, mas não são: a incompreensão é inevitável a partir do momento em que a visão de mundo do cientista está completamente alienada daquela que a astrologia faz parte. A queda da astrologia foi causada pelo distanciamento da sociedade dos princípios que a guiavam. A filosofia básica da astrologia não fazia mais sentido dentro do weltanschauung. (cosmovisão)”
Tradução livre de trecho do livro The Real Astrology
do astrólogo tradicional britânico John Frawley
A invenção da fotografia é mais um acontecimento contínuo do que um evento em si. Todo dia existem possibilidades para pensar formas diferentes de se fazer as coisas. Inspirações convergem as necessidades e poéticas do presente com aparatos do passado, redescobrindo trabalhos, ideias, fórmulas químicas e processos pouco difundidos em suas épocas. O interesse pela história popular da fotografia vem gerando buscas por artistas que não entraram em circuitos comerciais ou internacionais, que eram importantes figuras dentro de suas comunidades. Assim iniciam-se pesquisas sobre práticas regionais e seus atravessamentos culturais específicos como a fotopintura no sertão nordestino, por exemplo.
A vontade de reinventar futuros a partir do passado vai se tornar cada vez mais presente nos próximos anos (espero). É notável a proeminência crescente de temas que pretendem promover saberes originários através de obras e pesquisas que honram os ancestrais em publicações que valorizam e reconhecem os conhecimentos e filosofias de povos marginalizados de África e da diáspora atlântica, os modos de vida plurais dos povos de Abya Yala, a poesia e resistência política dos povos do oriente e sul-asiáticos.
Tudo isso nos lembra que nada é realmente inédito, só aos produtos interessa ser a “última novidade”. Processos fotográficos, como já falamos várias vezes, têm uma linha do tempo que anda lado a lado com o desenvolvimento do capitalismo, da modernidade e, hoje, da pós-modernidade. A necessidade mercadológica foi constituinte para os formatos, equipamentos, insumos e processos que temos. Os formatos de filme são feitos para caber nas câmeras, nos tanques, e nas bitolas dos seus respectivos projetores, os químicos são moldados para cada filme, as fórmulas e quantidades para cada formato, cada processo (negativo ou positivo) para as necessidades de uso, e por aí vai. Se nada veio do nada, saber disso é importante para entender e lidar com o ceticismo perante coisas que tem total fundamento teórico e prático para funcionar perfeitamente - ou não, se você não almejar esse resultado perfeito - o tempo das plantas numa revelação é outro, e não precisa ser igual para funcionar.
Arrisco afirmar que o interesse na estética visual fílmica vai aproximar de forma avassaladora o mercado do audiovisual comercial desse tipo de insumo nos próximos anos, resultando no lançamento de novos equipamentos, talvez um retorno de stocks antigos de filmes que não são mais fabricados. Enquanto isso, do lado de cá, câmeras seguem sendo construídas ou reinventadas com sucatas, equipamentos obsoletos modificados serão novos instrumentos feitos para imaginar premissas antigas que eram interessantes, pessoas compartilharão suas ideias de fotografia analógica caseira com itens acessíveis nas suas regiões e informações poderão ser difundidas de maneira educativa, simples e política. Enquanto existir gente pensando e vivendo modos criativos e livres de criar imagem, vai ter um futuro. Não porque fazer diferente é progresso, mas porque mais vale o brilho no olho de quem quer continuar com resgate e intenção.
No final, essa também é uma das modulações que constituem a história da humanidade. Para cada hegemonia, uma subversão, para cada ideia, tem questionamento, para cada coisa tem outra coisa. Cultivar abertura para pensar “quais são as coisas que a gente quer manter vivas e por quê?” talvez seja a parte mais importante de todas.
Esse texto faz parte da pesquisa e prática de Revelação Eco Consciente que explora e difunde processos fotográficos alternativos e laboratórios de improvisação
Queria aproveitar, pra quem lê por aqui e acompanha meu trabalho e não sabe - eu sou arte-educadora e estou sempre online para, nunca recusando, propostas nessa área. Trabalho com espaços independentes e instituições públicas ofertando oficinas e cursos. Quem vive nessas bem sabe, e a maioria (senão todas) as oportunidades que me surgem nesses contextos vêm de outras pessoas, dos encontros e articulações, vulgo: vocês mandam meu trabalho pro trabalho de vocês - ou evento, ou espaço, ou projetos.
Sou muito grata por isso, então coloco aqui embaixo pra facilitar (mas o link tá sempre na minha bio), meu site que tem informações e portfolio de oficinas. Meu e-mail de contato é floraefilme@gmail.com e todos esses assuntos podem ser conversados por lá. Eu moro em São Paulo, mas viajo bastante a trabalho e até prefiro!
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Abraço,
Samanta