Qualidade de imagem
Um desejo simples: a melhor qualidade. Uma missão impossível: entender qual a régua que determina essa qualidade.
Quando nos referimos a equipamentos fotográficos, a dúvida mais comum que surge é: qual é a melhor câmera? (alternativamente: Qual a melhor lente? Melhor filme? Melhor papel? Melhor equipamento).
É uma pergunta que qualquer bom vendedor responderia sem piscar: só empurrar o mais completo (por coincidência o mais caro), afinal, queremos um produto que entregue tudo o que um dia precisaremos ter.
Raríssimas vezes encontro alguém respondendo a pergunta com outra pergunta: mas como que você pretende usar?
Indicar filmes, câmeras e equipamentos em geral demanda que a pessoa que pretende fazer a compra tenha um momento de reflexão dos seus próprios processos no uso desses recursos. Cada caso é um caso e, ao contrário do que é amplamente promovido, ninguém (que eu conheça) sai comprando câmeras analógicas de 12 mil reais por causa de motivos concretos que beneficiariam o fotógrafo durante o uso. Até porque não tem equipamento ou produto que seja capaz de entregar a autenticidade de um artista sozinho. Não importa a qualidade desse equipamento.
A palavra ‘qualidade’ nesse caso é muito interessante de ser analisada. Como amante dos significados do dicionário que abriga as palavras (que fazem o chão pra gente desenvolver o que elas se tornaram).
Essa aqui é bem cretina, já avisando.
qua·li·da·de
Sendo sincera, o que mais me fascina na linguagem é a nossa capacidade de contradição e concomitância de significados: duas definições de uma só palavra estão certas, então duas pessoas que pensam de formas opostas podem estar certas, ao mesmo tempo, enquanto discordam.
Qualidade como individualidade, autenticidade, essência única de cada pessoa, ao mesmo tempo é uma determinante de quão dentro do padrão estamos.
Quem determina esse padrão? Que bom que perguntou!
Interlúdio da Semiótica
(ou, como tudo é construído)
Semiótica, segundo a definição de quem criou esse termo, o filósofo estado-unidense Charles Sanders Peirce, seria:
“algo que representa alguma coisa para alguém em algum lugar”.
Essencialmente, é uma área do conhecimento que se interessa em estudar os processos de interpretação do mundo a partir de 3 etapas que dependem uma da outra: os signos, os significados e os significantes.
Nessa frase do Sanders, a gente pode categorizar os pontos-chave:
Algo
Os signos podem ser colocados como as informações que recebemos através da existência: imagens que vemos são o exemplo mais fácil disso, porque estamos em uma sociedade dependente do que é visual.
Que representa alguma coisa
Os significados (ou significações) são como nós, indivíduos, vamos processar essa informação. Significados, segundo essa teoria, são atribuídos pelo senso comum, pelo contexto em que uma sociedade opera e reproduz.
Também existe uma outra categoria muito interessante dentro desse processamento: o sentido.
Para alguém
O sentido de um signo é a interpretação única que apenas você, pessoa com a sua vivência, pode atribuir (tanto que vem dos sentidos mesmo, ninguém é capaz de sentir o que você sente como você sente).
Em algum lugar
Os valores de uma sociedade, época, cultura e contexto são determinantes para a forma como enxergamos esses signos e o que pensamos deles. Afinal, o ser humano é sociável e depende desse confere geral para se organizar coletivamente.
Mas o que acontece quando a gente (que sente), vive em uma sociedade (que determina) e recebe signos que já vem com significados padronizados?
Imagens no capital cultural
Talvez essas palavras não sejam desconhecidas para alguns. O conceito de capital cultural é extremamente importante (e complexo, portanto recomendo ler mais aqui). Essa ideia de capital cultural é desenvolvida por um sociólogo francês chamado Pierre Bourdieu, que estudou de forma profunda as relações culturais, sociais, de classe e de educação.
O “capital cultural” é um conceito que se baseia também, assim como nesse exemplo da semiótica, em 3 estados que se complementam entre si:
Incorporado
São os conhecimentos e a competência que temos neles: valorizamos ter um bom domínio da linguagem culta, saber e nos encaixarmos em códigos sociais, por exemplo.
Objetivo
São as realizações materiais - o que a gente faz com esses conhecimentos?
Obras de arte, livros, instrumentos, mídias…
Institucionalizado
É a validação de reconhecimento dessas competências e, portanto, do valor que nossas produções possuem na sociedade. Prêmios, diplomas, títulos.
Daí já dá pra perceber onde tô querendo chegar, mas pausando um pouco nos conceitos, vamos de exemplos mais reais, ou melhor, mais digitais.
Em filme ou 4k?
Com a volta da fotografia que se utiliza da película aos holofotes da internet, (t1k t0k, oláaaa), principalmente frequentada por um público que nasceu e cresceu durante ou depois da transição do “analógico para o digital”, a lógica do filme e do sensor se inverte.
É completamente compreensível (até porque a gente só conhece o mundo que tivemos a oportunidade de viver) que surja essa diferenciação na técnica fotográfica analógica vs. digital.
A graça é: a fotografia “analógica” ou “fotoquímica”, até a invenção, evolução e comercialização de câmeras digitais, era a fotografia.
A diferença entre filme e digital se deu a partir da priorização do digital, portanto, precisando se afirmar sobre o filme. Mas e aí, o que muda?
Como eu falo toda hora, a fotografia é um processo de registro de imagem através de:
Uma fonte de luz (photos/foto!)
Uma base fotossensível (no caso do filme, quimicamente sensível, no caso do sensor, uma versão digital dessa fotossensibilidade, mas que ainda depende tanto da luz quanto).
O formato digital e o formato analógico seguem as mesmas regras, em processos diferentes de renderização (ou revelação) dessa imagem para que ela se torne visível. Só.
Algo que é muito interessante de se observar nessa diferenciação de geração de imagem são, justamente, as qualidades.
A qualidade (sentido 1 do dicionário: individualidade e essência) entre uma imagem gerada numa película e uma imagem gerada no sensor digital, se diferencia nas sutilezas. É a tal da “vibe de analógica” que eu nem preciso explicar porque acabou de vir um exemplo certeiro na sua cabeça. A imaginação é algo incrível.
A qualidade (sentido 2 do dicionário: padronização e consistência) é, ironicamente, o mais relativo.
Você já deve ter ouvido que alguém usa equipamento analógico para obter uma melhor qualidade (principalmente lentes), ou que escolhe fotografar em filme justamente porque se preserva uma qualidade de imagem (no preto e branco, inclusive); ou que uma pessoa precisa scanear um negativo em alta qualidade para imprimir (fazendo o jogo do analógico - digital - impressão digital - distribuição analógica, que é fascinante de pensar também).
A fotografia com filme nunca mais vai conseguir se separar dos processos digitais que dominam nosso mundo, então, agora é impossível pensar no filme como filme nessa perspectiva. Efeitos do tempo e da história aos quais tudo vai ter que se transformar.
E aí tem o Instagram. Sempre tem o Instagram.
Um algorítmo que não só prioriza conteúdo através de uma inteligência artificial com informações coletadas do nosso comportamento (o famoso “engajamento”), mas também a partir da nossa propensão a engajar com determinado tipo de conteúdo a partir de sua qualidade de imagem.
Querem um exemplo? Postei 2 reels seguidos que tiveram menos de 40% de visualizações (ou seja, entrega via algorítmo) normal pro meu alcance de reels, mas a única diferença entre esses vídeos e os demais: qualidade de imagem.
Um era um vídeo de 320p filmado numa Sony handycam de 2007, qualidade tão “baixa” que o próprio app deu uma bugada na hora de postar nos stories. O outro, um vídeo de stop motion de filme que já tinha feito várias outras vezes (em scanner), só que esse foi via celular. Tava em uns 720p e salvo em 24fps (é a taxa de frames de uma exibição de película, no digital usamos 30fps).
Então, não é a toa, já que o algorítmo é uma forma incrível de observarmos o que já existe (porque a inteligência artificial opera como o que é: uma máquina que faz sua função), que fique evidente o quanto o que nossas imagens significam aos receptores potenciais (seguidores e não seguidores) a partir do padrão social do que é uma imagem de boa qualidade.
Perfis como o da própria Kodak que repostam apenas imagens com filme que nem parecem que foram tiradas com filme, a preferência em vários nichos da fotografia com filme por “filmes / reveladores grão-fino”, a demanda por scans com performances absurdas para honrar a qualidade que a película preserva.
São claras provas de que o desejo pela estética do filme está mais com o povo do digital que cria presets com vibe analógica do que com quem escolhe (e tem o privilégio de) fotografar com filme.
Imagens pobres
No fim das contas, o pixel é um grão quadrado, um algorítmo é uma curadoria automática e a visão artística das imagens segue um propósito muito menos ligado aos nossos sentidos e muito mais ligado às significações.
A noção de que a qualidade das imagens é determinante do valor (monetário e subjetivo) delas faz parte do processo de elitização do conhecimento, da cultura, e da fotografia. A quem interessa determinar a qualidade?
Quais são os padrões de individualidade (risos) que temos que seguir com as nossas imagens?